O que Erick Morillo e o caso da Mari Ferrer tem em comum

Desde ontem, quando vi a notícia de que o caso da Mari Ferrer foi concluído inocentando o estuprador “por falta de provas”, estou me sentindo deslocada, um sentimento de não pertencimento, uma sensibilidade aflorada, lágrimas que caem por vontade própria, uma tristeza profunda. Isso porque o que aconteceu com a Mari, aconteceu comigo também, temos que parar de ver o outro como “o outro” e sim como uma extensão de nós mesmos.

Quando a Mari foi estuprada e teve seu futuro, sua sanidade, sua juventude roubadas, eu também tive, porque a Mari é um extensão de mim. Quando o estuprador fez o que fez, eu também o fiz porque ele também é uma extensão de mim. Todos somos responsáveis e todos somos vítimas, precisamos agir, precisamos punir quem deve ser punido, assim como aprender a pagar pelos erros que cometemos, chega de fechar os olhos por achar que o problema é do outro, se você não fez nada de errado isso não te exime da culpa ao ver algo tão absurdo acontecer e não fazer nada, assim como somos culpados, nós também somos vítimas, e como vítimas reconhecemos o quanto é difícil enfrentar o que está acontecendo, admiro muito a força e a coragem da Mari por se expor e aguentar tudo que aguentou até aqui. Eu estou apreensiva quanto ao futuro dela e o futuro dela é responsabilidade de TODOS nós.

Para quem não sabe, eu já trabalhei no grupo em questão, na época em que conheci a Mari Ferrer, eu trabalhava na extinta Pacha. O circuito de baladas de Jurerê Internacional, que inclui o Café de La Musique, é famoso pela ostentação de poder dos seus frequentadores e foi lá que tive as piores experiências com o entretenimento.

Os promoters mais bem pagos eram aqueles que não só atendiam os clientes mais ricos do país, mas aqueles que traziam as meninas mais bonitas para os camarotes, muitas delas eram modelos vindo do Brasil inteiro com todas as despesas pagas, hospedagens e o circuito de festa montados. Muitas nem imaginavam onde estavam se metendo, eram deslumbradas pelas ofertas e visibilidade que poderia gerar pelo simples fato de marcarem presença e “embelezarem a festa”, mas na verdade elas eram coagidas a beberem o máximo e tratar bem os clientes que estavam proporcionando tudo aquilo, manipulando a situação para que elas sentissem que de fato deviam algo a eles pelo simples fato de estarem ali usufruindo de tudo.

Certa vez, em um outro extinto clube da cidade, um desses clientes riquíssimos, herdeiro de uma das maiores redes de varejo do Brasil, estava como convidado no backstage de uma festa e ao levar um não de uma das meninas, pediu as champanhes mais caras da casa e ao chegar impediu que todas as mulheres presentes bebessem e começou a despejar as bebidas no balde de gelo, humilhando todas as mulheres.

Esse tipo de cena é muito mais comum do que você imagina, inclusive o Erick Morillo, que causou comoção ao ser encontrado morto essa semana, era um dos DJs favoritos da elite de Florianópolis e eu demorei a entender o porquê. Eu sempre o achei escroto, a maneira como ele olhava as mulheres, a maneira como se comportava e isso me causava revolta porque não é como se ele fizesse jus a sua carreira, eu não entendia porque insistiam em trazê-lo, hoje eu entendo perfeitamente.

Muitos foram os relatos que surgiram sobre o Erick Morillo e para entendermos como essa realidade não tão paralela assim funciona, precisamos analisá-los. Vamos começar com o relato da artista de drum and bass DJ Empress, que detalhou seu próprio caso de abuso por Morillo quando ela tinha apenas 17 anos trabalhando em uma loja de discos em Nova York, e eu me recuso a usar o artigo “suposto” antes de abuso. Em uma longa postagem no Facebook, ela detalhou o trabalho na Satellite em Nova York, onde Morillo a assediou e agrediu quando entrou na loja.

“Tenho mantido isso desde 1998, então posso muito bem dizer agora, pois pode ajudar algumas pessoas. Erick Morillo costumava me assediar sexualmente como um louco quando eu trabalhava como vendedora em uma loja de discos em Nova York chamada Satellite quando eu tinha 17 anos. Tanto que ele até pegou meu telefone do banco de dados da loja sem meu consentimento e também o número da casa de um amigo meu em que eu estava para que ele pudesse me ligar e me enviar mensagens nojentas e sexuais me assediando.”

“Ele vinha por trás de mim e esfregava seu pau por todas as minhas pernas e bunda quando eu estava de frente para a parede guardando discos, enquanto respirava seu hálito quente e úmido em meus ouvidos e sussurrava coisas sexuais pervertidas que ele queria fazer comigo. Nas primeiras vezes que ele fez isso comigo, me lembro apenas de congelar. Não sabia o que fazer, era tão jovem. Era o cara de ‘I like to move it move it’ – todos na época conheciam essa música.”

“Ele era esse super intenso canalha e totalmente pervertido. Eu me escondia no andar de baixo, no porão da loja e no banheiro quando ele estava lá, até que os donos gritavam para que eu voltasse para a loja. Todo mundo sabia o que ele fez comigo.”

As pessoas na loja sabiam do que estavam acontecendo e chegaram a dizer que era assim que as coisas funcionavam.

“Todo mundo sabia o que ele fazia comigo. Um funcionário antagônico chegou a me contrariar dizendo que eu havia gostado. A dona me explicou que se eu quisesse trabalhar na loja, encontros assim faziam parte do andamento das coisas com os DJs de maior sucesso ”, explica. Por causa de sua situação de vida, aquele trabalho era uma tábua de salvação para uma renda desesperadamente necessária.

Leia a declaração completa abaixo.

I’ve been holding this in since 1998, so I might as well say it now, as it may help some people. Erick Morillo used to…

Posted by DJ Empress on Monday, September 7, 2020

Entre as mulheres que se manifestaram contra aqueles que elogiavam Morillo após sua morte e muitas vezes minimizavam seu abuso esta Ida Engberg, que teve seu próprio caso de má conduta de Morillo. Para quem não está familiarizado com Ida, ela é casada com Adam Beyer.

Comentando sobre uma postagem de Jamie Jones, a qual já foi excluída, Engberg escreveu:

“Conheci [Erick] Morillo em Ibiza em 2006. Certa vez, em uma after party em sua casa, sentei-me em uma espreguiçadeira conversando com um amigo meu quando ele se aproximou de mim por trás, puxou minha cabeça para trás segurando minha testa contra a espreguiçadeira e derramou uma bebida em minha boca contra minha vontade. Fiquei chateada e perguntei o que era. Ele riu e disse ‘é MDMA’. Eu disse, por favor, posso escolher por mim mesmo se quero usar drogas ou não. Eu me levantei e saí da festa. Mais tarde, ouvi de um amigo que ele havia pedido a todas as meninas que não queriam ficar nuas que saíssem da festa. Eu o encontrei depois e ele apenas riu e disse ‘bem, você não ia transar comigo de qualquer maneira, ia?’. Ele também disse que eu não era bem-vinda de volta em sua casa. Anos depois, quando eu era mais ‘conhecida’, ele sempre foi tão doce e educado. Eu disse a ele que ele era a pior pessoa e a mais desrespeitosa que conheci em nossa cena e sempre me recusei a falar com ele. Esta é apenas minha história. Pode não parecer grande coisa para alguns, mas passei uma temporada em Ibiza em 2006 e ouvi inúmeras histórias semelhantes. Ele tinha a pior reputação. Eu não experimentei nada perto disso.”

Erick Morillo foi acusado de agredir sexualmente uma mulher em dezembro de 2019. A acusação foi feita por uma colega DJ (mulher) que disse que Erick a abusou sexualmente em sua casa em Miami. Eles trabalharam em um evento em Miami e voltaram para a casa dele com outra pessoa após o show para um drink. A vítima cansou-se e foi para um quarto dormir um pouco. Na denúncia, ela alega que acordou nua na cama com Morillo que estava ao seu lado lado também nu.

Ele negou as acusações até ser preso em agosto, depois que um kit de estupro mostrou que seu DNA estava na cama. Ele deveria comparecer ao tribunal no dia 4 de setembro. Ele morreu dia 1º de setembro.

Depois de um tempo, quando passou a se perceber que apenas ser bonita não era suficiente, começaram a recrutar “embaixadoras”, atraindo pessoas como a Mari, que estavam começando a se aventurar na mídia de influência digital sobre falsas promessas de visibilidade e oportunidades. Eu conheci a Mari pessoalmente, não era próxima, mas ela tinha uma luz e uma energia que era contagiante, sempre focada, discreta e educada, fazia o trabalho dela e nunca a vi envolvida em nenhuma cena comum onde as meninas se deixam levar pelo meio, pelo contrário, ela sempre soube quem era, o que me deixou ainda mais revoltada com todo esse caso.

Vivemos num mundo onde minimizamos a cultura do estupro, culpamos a vítima e idolatramos pessoas como Erick Morillo até mesmo na sua morte rodeada por acontecimentos perversos, ao invés de usarmos isso como alerta para expormos o que realmente acontece nessa cena, usamos a morte como forma de jogar a sujeira para baixo do tapete. Eu queria poder ter salvo a Mari, mas no momento que decidi deixar o grupo eu estava apenas tentando salvar a mim mesma, não conseguia mais fazer parte daquilo. Eu queria poder ter feito mais por tantas Maris que existem, incluindo eu mesma. Esse sentimento de impotência diante de uma sociedade machista, tóxica e perversa que me assusta incomoda, o silêncio incomoda.

Que assim como a Mari, tenhamos a coragem de expor isso. A batalha pode ter sido perdida, mas sem sombra de dúvidas esse caso mudou a vida de muitas pessoas, inclusive a minha. Que possamos tomar melhores decisões daqui pra frente, que possamos agir diante de tanta injustiça!